29/04/2011 Operação policial na Praça Sete em BH apreende produtos de hippies e gera revolta |
A intolerância à diferença numa campanha de higienização social em Belo Horizonte. Ensaio baseado no vídeo-documentário de Rafael Lage: “A criminalização do artista – como se fabricam marginais em nosso país”.
Há muito tempo atrás escrevi um poema sobre os mendigos, "quase sempre todos cinzas", inspirado em Caetano Veloso. Não sei onde foi parar o poema, nem muito menos faço ideia de onde tirei Caetano do seu sono bastardo para falar sobre essa população de rua. Morava em Minas e lá, apesar de ter mendigos, não como em grandes megalópoles, tinha também um outro estrato de população de rua bem parecidos com eles mas muito diferentes também. Nessa época eu estagiava num hospital psiquiátrico em Barbacena, a chamada "cidade dos loucos", devido à quantidade de manicômios presentes nela, como herança de um tempo e de uma historicidade que seria melhor esquecer.
FHEMIG - CHPB Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena |
Eu, então estudante de psicologia, amante de Nietzsche, Deleuze, Foucault, dentre outros, descobria esse mundo novo e me apaixonava como se fosse à mulher de minha vida e, cedo, passei a ser palestrante na Faculdade em que eu era aluno e na instituição psiquiátrica a qual eu trabalhava. Certa vez falei para todo corpo clínico dessa famosa instituição e o tema foi: "A História da Loucura em Michel Foucault". Com o aval de minha orientadora, encarei o desafio e toda a ordem psiquiátrica que se fez ouvidos naquilo que julgaram "desaforo" com o conteúdo exposto a todos. Dava para ver a indignação dos médicos, afetados em seus saberes nunca supostos cujas perguntas demonstravam explicitamente o incômodo por aquela manhã foucautiana dentro da FHEMIG - quase um acinte falar de Foucault dentro de um hospital psiquiátrico. Mas eu era um jovem tão petulante e desafiador que fazia do meu próprio medo de enfrentamento uma entrega ao encontro dele mesmo e numa velocidade esteticamente suicidária – à maneira de James Dean em seu Porsche 550 naquela reta infinita (ao invés de usar o freio a motor, ele acelerou ainda mais em direção ao devir).
Hippies - Paz e Amor |
Eu aqui falando de loucos psiquiatrizados, da ordem normatizada antes da luta antimanicomial, mas na verdade querendo falar de um estrato de loucura que não é exatamente aquela dos andarilhos nas estradas, nem também dos mendigos quase todos cinzas embaixo das marquises, em frente aos bancos e repartições públicas demandando piedade e lembrando-nos em suas misérias que cristo parecia com eles, mas quero trazer uma breve reflexão daqueles artesãos de rua, quase sempre confundidos com mendigos, bandidos e drogaditos, quase sempre todos loucos que abandonaram o sistema, a família, a ordem estabelecida para estampar nas ruas um movimento muito próprio de contracultura cuja origem se deu nos idos de 68 no chamado movimento hippie onde o lema era "paz e amor". Inevitável atrelar como pecha pejorativa a este movimento neo-hippie suas vinculações com os quatro segmentos decalcados. A maconha sempre foi para eles a companheira da solidão e se a usam é porque assumir uma invisibilidade social num mundo feito de imagens, feito para os "vencedores", é doloroso demais atravessá-lo "careta", então, fazer caretas, desenhar e esculpir caretas em durepoxi, é ao mesmo tempo fazer o auto-retrato de suas próprias caricaturas, rostidade outras onde a máscara é o verdadeiro rosto. Como interditar movimentos tão espontâneos e colocá-los freudianamente a serviço da realidade? São apenas loucos não psiquiatrizados, estes invisíveis sociais que se recusaram ao adestramento da família, da escola e do socius (que sempre separa o diferente do normal, o bonito do feio, o rico do pobre), mas que se diferenciam dos mendigos, bandidos e adictos por viverem seus nomadismos em busca de esculpir suas rostidades.
Artesãos de potências nômades |
Tantos estigmas carregam em suas mochilas que, embora não sejam mendigos profissionais, bandidos cometendo latrocínios, drogaditos vivendo em cracolândias ou loucos psiquiatrizados amansados pela química medicamentosa, ainda assim, carregam neles, todos estes estigmas em suas bagagens tal como se fossem tudo isso e merecessem o rigor da lei e a punição do grande pai que sustenta um projeto de felicidade individual do sujeito bem sucedido, do vencedor que nunca fracassa, perde ou erra, deste que usa e usurpa o poder, esta paixão triste, para esmagar a alegria da potência, da descoberta pueril, do caminho da arte feita com as mãos calejadas, sujas, imundas, repletas de bactérias que tanto nauseiam os precursores da assepsia, do discurso limpo, do rosto maquiado, da beleza estonteante, do sucesso que abre portas, de tudo aquilo que idealizou-se acreditar como sendo virtuoso, bom e salutar. Eis que estes quase-mendigos, quase-bandidos, quase-drogaditos de cracolândias, quase-loucos lobotomizados nos depósitos manicomiais, continuam entre nós nas ruas, nas esquinas, nas modas que insistem em voltar e adornar as novas gerações.
A escuta atenta - O Anti-Édipo |
Na verdade somos todos (quase sempre todos) cinzas e não há diferença alguma da segregação dos tempos atuais daquelas dos idos da Idade Média onde num primeiro momento era interessante ver a loucura no outro porque ela refletia o quanto o indivíduo aliviado não era aquele desarrazoado que perambulava falando sozinho pelas ruas e maltrapilho. Mas isso foi ganhando ao longo dos anos mais adeptos que a loucura precisou ser confinada, deslocada do seio familiar e das ruas para os antigos leprosários. Assim nasceu a escola, o hospital, a prisão, a família, tudo mediado por um Deus que iria perdoar a todos quando partissem desse para o além-mundo. Imundo. I-mundo, na verdade, é a ausência desse mundo degradado tido como real, não exatamente sinônimo de sujeira, banditismo, drogadição mortífera ou surto psicótico. Há um devir inventivo fabuloso nestes quase-loucos-cinzas apesar de carregarem como arquétipo coletivo um inevitável estigma de tudo o que há de mais degradante no indivíduo e na sociedade mas também, contraditoriamente, no limpo indivíduo branco, bem sucedido, centrado e neoliberal: o pequeno burguês imbecil, portador do sujo-segredo-familiar.
Isabeli Fontana e Rohan Marley |
As lindas meninas da zona sul que o digam. Elas não se curvariam ante suas pulseiras e penduricalhos se não sentissem uma necessidade quase sexual de receptarem essas bactérias e anexarem em suas belezas tão insossas mas abertas ao que há de mais sórdido e saboroso no encontro com o diferente. Cansadas do mais do mesmo, acabam de alguma maneira, intuindo que o bom sabor está na gordura, no marginal, no devir-bandido, na entrega sem reservas ao canalha que as enche de prazer, naquele que cospe em sua boca e mata sua sede assim, na experimentação do i-mundo, este outro mundo menos coberto de fantasias e sentido a plenos pulmões, no encontro com aquilo que a tradição, a família e o direito privado mais abominam por temer que potências se desloquem daí e embaralhem os devires da filha recatada, ou da esposa submetida a sonhos que não saciam mais cujos neo-hippies, em suas inocentes feições artísticas, e flertando com o devir "fora da ordem", nos traz a título de reflexão social e sexual, um mundo que não conhece nem mesmo sobre o próprio ideal de limpeza em que se propõe, quanto mais do "perigo" que este povo de rua supostamente enseja às suas noções de estética/beleza.
Os "bons" sentem-se agredidos e a ideia é sempre a mesma, vamos varrer e limpar a humanidade da pobreza, da feiúra, da doença, qual seja, da diferença, apenas não se dão conta que este mesmo i-mundo frequenta cada vez mais seus lares, suas instituições, e estão ensinando suas filhas a gozarem lindamente, além de estar presente em suas fantasias mais incautas e perversas, onde, claro, irão negar até a morte em nome de uma autoridade inteiramente falida. Ironias da contradição. Tanto melhor. Aqui não adianta latir, tem que morder!
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Este texto é dedicado a Laio Bispo, amigo baiano que tuitou esse vídeo há poucas horas e acabou inspirando este breve ensaio. Repasso o belo documentário feito por Rafael Lage chamado A criminalização do artista. Tempo de duração: 17' 51''.
Irlan Farias