terça-feira, 5 de abril de 2011

No fio da navalha

Ensaio sobre o suicídio
Seria possível ensaiarmos o suicídio? Não sei, talvez sim. Ensaiamos nos dias frios ou quentes, iguais a todos os outros que passam sem deixar lembrança, ou quando eles nos marcam positiva ou negativamente. Morremos a cada dia mais do que a ordem natural das coisas, na ação inexorável do tempo sobre os corpos animados ou inanimados onde tudo perece. Mas tudo parece ser sempre um ensaio do horror, mas nem sempre é assim, tem uma beleza presente aí que se faz ensaio durante anos, meses ou dias – no dia a dia de nossos segredos mais inconfessáveis. Tudo muito bem costurado por nossa própria vontade, um verdadeiro espetáculo que culmina sempre com um fim meticulosamente premeditado: ninguém se suicida por impulso. A morte assim ganha seu status mais espetaculoso - quando eu me mato tenho o poder da vida em minhas mãos. Delírio de grandeza na desesperança de prosseguir, fazendo dessa escolha um olhar do outro sobre este ato que irá marcá-lo para o resto de sua vida. A quem precisamos tiranicamente chamar a atenção? Que gozo mais cruel e radical é este em que edifico minha negação ao invés de afirmar minha dor no encontro com novos possíveis?

Escolhemos sempre todos os nossos adoecimentos, nada acontece fortuitamente. Nem agenciamentos genéticos ou hereditários teriam tanta força quanto o poder de nossas escolhas. Sabotamos a vida quando ela se apresenta mais livre e afeita às maiores descobertas. Não suportamos a saúde. Até certo ponto ela nos faz mal, assim como o riso e a felicidade alheia. Nosso prazer é ver que existem outros em piores situações que a nossa, então, apenas assim, nos resignamos de imediato – e até tentamos ajudar, oramos, mas no fundo o que sentimos é um alívio tremendo, como já dizia Foucault no seu A história da loucura. Precisamos da angústia para ela gerar sintomas e assim termos a atenção sobre nós de volta à fórceps. Mas não a angústia que cria novas saídas e que instiga o sujeito a inventar novas linhas em sua trajetória, a que gera o incômodo e impulsiona o indivíduo a sua superação, mas aquela angústia que nos põe para baixo porque o mundo não presta, o outro é o culpado pelo nosso infortúnio, porque amamos ser a vítima do mundo já que é preciso que nos olhem a todo preço nem que para isso tenha-se que ficar sob o fio da navalha:

"Meu noivo se suicidou essa noite, com ele morto eu me sinto morta. Prefiro ir com ele, minha força não faz mais sentido. Quero ir encontrá-lo".

Com essas palavras, a modelo e escritora Cibele Dorsa, 36 anos, versou no Twitter sobre a morte de seu noivo Gilberto Scarpa, 27 anos, que se atirara da janela de seu apartamento após uma crise de abstinência de drogas em janeiro deste ano. Após o trauma, foram semanas gestando silenciosamente um ensaio a esta altura, desta vez, não mais para a Playboy, onde foi capa em 2008, mas da própria morte. Assim, continuou estampando no Twitter sua dor e incapacidade de revertê-la por outra coisa diferente do encontro prazeroso com seu fim. Não se enganem. Há prazer no fim anunciado (antes de consumado). E, acreditem, ela adorava flertar com este fim. Vivia a seduzir e brincar com este fim. Em 2008, sofreu um grave acidente de carro quando voltava da Night que acabou resultando na morte de seu amigo (que dirigia seu carro) e na feição/sublimação de seu segundo e último livro, cuja foto é ela maquiada de ferimentos e suturas numa plasticidade hipnotizante, um convite delicioso para ler – ou sentir a morte em suas letras (veja foto).  Conta o livro os bastidores das baladas, que, embora pareça ser um mundo de felicidade plena, elas escondem muita dor e intensidades mortíferas, a velha tríade bem conhecida de sexo, drogas e rock'roll no limite máximo.

Na esteira dessas intensidades antiprodutivas, em dezembro de 2010, mais um episódio nesta direção, ambos foram muito surrados pelos seguranças da casa noturna Lions, em São Paulo. Ela posa de vítima, evidente,  fora vitimada por uma violência desmedida mas não revela o que motivou. Não precisa. Ela posa para a câmera e expõe sem nenhuma vergonha suas marcas roxas e retalhos pelo braço. Prazer nessa exibição? Evidente que sim. Quase prazer na dor em si. Poderia ter se salvado se tivesse sido bem iniciada nos rituais de dominação sado.

"Homem não se poda, se dá corda, uns se enforcam, outros pulam...". Reuniu seus cacos tentando mostrar-se em cima do salto, continuou Cibele ensaiando seu ato final no Twitter. Tal fala ilustra a perversão nossa de cada dia. Talvez não sejamos tão bons assim, é preciso de um certo talento para ser isso aí.

"Vc não acredita em meu amor, então eu vou te provar" – teria dito Scarpa antes de se atirar pela janela, provavelmente tomado pelo seu devir-pássaro (sem asas) ou de uma angústia avassaladora provocada pela abstinência da cocaína e, o pior, a total incapacidade de se livrar da droga... Cibele Dorsa. Essa que fez libertar potências nele mesmo não simbolizadas – não houve tempo hábil. Sua última saída foi o vôo do pássaro sem asas. Se ele pudesse teria dito a elas: Sumam da minha vida, eu não preciso me refugiar nesse arremedo de prazer e perversão! Fiquem longe eu preciso me curar – de mim mesmo e de vocês duas! Cibele se pudesse teria tirado de suas lembranças o ato final de seu noivo em suas trágicas palavras – ela nunca pensou que ele pudesse realizar aquilo que ela perversamente patrocinou. Em sua equação arrogante, jamais o resultado final poderia ser esse fim trágico, ela apenas o queria a seus pés e, na impossibilidade de alterar o roteiro de sua obra, acabou ele ensinando-a como voar sem asas.

Ela, sem saídas, alterou a sua perfeita equação em função do fim que não estava em seu script – e sem saídas, espetaculosamente rendeu-se ao vôo do pássaro das asas quebradas, se atirando em 26 de março, da mesma janela em que ele, lúcido, se fez escape de suas duas últimas derrotas fundidas em nome e sobrenome: Cibele Cocaína Dorsa. 

IFarias

sábado, 2 de abril de 2011

Jogar e torcer

Mais um domingo. Mais uma rodada de futebol. Milhares de torcedores apreensivos com o grande clássico que estava por vir. Com ele não era diferente. Ah não ser por um pequeno detalhe: torcia por um time, mas ia jogar pelo outro...era a primeira vez que iria enfrentar seu time de coração, vestindo a camisa do maior rival.
Ironias do destino. Ou melhor, do dinheiro.
Almoço na barriga, restava descansar um pouco, arrumar a mochila, entrar no ônibus e partir em direção ao estádio. No caminho esteve absorto entre as músicas de seu Ipod e as lembranças do pai, ainda vivo, que lhe ensinara a amar o futebol e o clube rival, em particular. Lembrou-se da primeira camisa, com o 9 nas costas. Do distintivo, cuja costura desfez-se logo depois da primeira lavagem. Da cara do pai, entre a raiva e a decepção, pela aparente falta de cuidado do filho. Dos testes que fez em vários clubes do Brasil, quando ainda era piá. Da companhia do pai em cada um deles. Da recusa deste em levar-lhe ao centro de treinamento das categorias de base do rival. Do início no futebol, em clubes distantes e de menor expressão. Do dia em que marcou dois gols na final da Copa São Paulo, a Copinha. Do assédio de clubes maiores. A cara de expectativa do pai, em relação à uma proposta do clube de coração, que não veio.... a ausência do pai, quando o maior rival bateu à sua porta com uma proposta irrecusável. Do silêncio dele durante toda a semana que antecedeu o grande clássico.
De repente o ônibus para e todos começam a descer. Ele é um dos últimos a entrar no vestiário. Palestra motivacional, isotônico, alongamento e aquecimento, Pai Nosso, fogos e gritaria quando o time entra em campo...
Olhou com uma certa inveja para cada um dos que vestiam a camisa do outro time. Olhou para as cabines de tv, esperando que alguma câmera captasse sua expressão de angústia e descontentamento. Talvez, assim, o pai pudesse perdoá-lo....
Times posicionados, apito na boca do juiz, bola em jogo. Vai demorar para acabar. Vai parecer que são bem mais do que noventa minutos. Destes passou boa parte trocando passes laterais, sem ser muito agudo quando ia ao ataque. A imagem do pai não lhe saia da cabeça. Não era bronco o suficiente para não se importar com o velho. Sabia que ele também estava angustiado, mas desconfiava que ele fosse mais torcedor do que pai... triste, verdadeiro, mas insuficiente para que deixasse de lado a sensibilidade para com os sentimentos do genitor.
Fim de primeiro tempo: 0 x 0. No intervalo o treinador muda o posicionamento da equipe e coloca-o isolado no ataque. Agora não ia dar para se esconder. Bem que tentou se enroscar nos defensores, mas a bola acabou sobrando para ele. Sem goleiro, na pequena área...não teve jeito. Empurrou a redonda para dentro das traves e sentiu-se mal. Não foi o peso dos companheiros, pulando em suas costas, que lhe fizeram arquear as pernas e tombar no gramado. Foi o peso da culpa em seus ombros. Pensou: "Porque não simulei uma contusão!"
Antes do jogo recomeçar passou por uma câmera próxima e balbuciou: "Desculpa...".
Os especialistas em leitura labial discutiam: "Ele falou um baita palavrão!", "Foi uma homenagem para a esposa."... coitados inocentes...
Quando o jogo caminhava para o seu final eis que a caixinha de surpresas se abriu: gol do adversário. Tudo igual. Mal viu o lance, pois estava com seu foco de atenção totalmente obnubilado pela ansiedade. Mas acalmou-se um pouco. O suficiente para observar quando o adversário fez o segundo gol, em cobrança de escanteio, aos 47 do segundo! Virada sensacional! Título na raça! "Meu pai deve estar pulando de felicidade!"
Só então percebeu que levantara os dois braços, com os punhos cerrados e comemorara o gol do adversário! A mídia adorou. A torcida não pedoou. Nem o clube... foi seu último gesto vestindo aquela camisa. Não telefonou para a casa dos pais depois do jogo. Sabia que poderia passar um tranquilo Natal em família....