sábado, 2 de abril de 2011

Jogar e torcer

Mais um domingo. Mais uma rodada de futebol. Milhares de torcedores apreensivos com o grande clássico que estava por vir. Com ele não era diferente. Ah não ser por um pequeno detalhe: torcia por um time, mas ia jogar pelo outro...era a primeira vez que iria enfrentar seu time de coração, vestindo a camisa do maior rival.
Ironias do destino. Ou melhor, do dinheiro.
Almoço na barriga, restava descansar um pouco, arrumar a mochila, entrar no ônibus e partir em direção ao estádio. No caminho esteve absorto entre as músicas de seu Ipod e as lembranças do pai, ainda vivo, que lhe ensinara a amar o futebol e o clube rival, em particular. Lembrou-se da primeira camisa, com o 9 nas costas. Do distintivo, cuja costura desfez-se logo depois da primeira lavagem. Da cara do pai, entre a raiva e a decepção, pela aparente falta de cuidado do filho. Dos testes que fez em vários clubes do Brasil, quando ainda era piá. Da companhia do pai em cada um deles. Da recusa deste em levar-lhe ao centro de treinamento das categorias de base do rival. Do início no futebol, em clubes distantes e de menor expressão. Do dia em que marcou dois gols na final da Copa São Paulo, a Copinha. Do assédio de clubes maiores. A cara de expectativa do pai, em relação à uma proposta do clube de coração, que não veio.... a ausência do pai, quando o maior rival bateu à sua porta com uma proposta irrecusável. Do silêncio dele durante toda a semana que antecedeu o grande clássico.
De repente o ônibus para e todos começam a descer. Ele é um dos últimos a entrar no vestiário. Palestra motivacional, isotônico, alongamento e aquecimento, Pai Nosso, fogos e gritaria quando o time entra em campo...
Olhou com uma certa inveja para cada um dos que vestiam a camisa do outro time. Olhou para as cabines de tv, esperando que alguma câmera captasse sua expressão de angústia e descontentamento. Talvez, assim, o pai pudesse perdoá-lo....
Times posicionados, apito na boca do juiz, bola em jogo. Vai demorar para acabar. Vai parecer que são bem mais do que noventa minutos. Destes passou boa parte trocando passes laterais, sem ser muito agudo quando ia ao ataque. A imagem do pai não lhe saia da cabeça. Não era bronco o suficiente para não se importar com o velho. Sabia que ele também estava angustiado, mas desconfiava que ele fosse mais torcedor do que pai... triste, verdadeiro, mas insuficiente para que deixasse de lado a sensibilidade para com os sentimentos do genitor.
Fim de primeiro tempo: 0 x 0. No intervalo o treinador muda o posicionamento da equipe e coloca-o isolado no ataque. Agora não ia dar para se esconder. Bem que tentou se enroscar nos defensores, mas a bola acabou sobrando para ele. Sem goleiro, na pequena área...não teve jeito. Empurrou a redonda para dentro das traves e sentiu-se mal. Não foi o peso dos companheiros, pulando em suas costas, que lhe fizeram arquear as pernas e tombar no gramado. Foi o peso da culpa em seus ombros. Pensou: "Porque não simulei uma contusão!"
Antes do jogo recomeçar passou por uma câmera próxima e balbuciou: "Desculpa...".
Os especialistas em leitura labial discutiam: "Ele falou um baita palavrão!", "Foi uma homenagem para a esposa."... coitados inocentes...
Quando o jogo caminhava para o seu final eis que a caixinha de surpresas se abriu: gol do adversário. Tudo igual. Mal viu o lance, pois estava com seu foco de atenção totalmente obnubilado pela ansiedade. Mas acalmou-se um pouco. O suficiente para observar quando o adversário fez o segundo gol, em cobrança de escanteio, aos 47 do segundo! Virada sensacional! Título na raça! "Meu pai deve estar pulando de felicidade!"
Só então percebeu que levantara os dois braços, com os punhos cerrados e comemorara o gol do adversário! A mídia adorou. A torcida não pedoou. Nem o clube... foi seu último gesto vestindo aquela camisa. Não telefonou para a casa dos pais depois do jogo. Sabia que poderia passar um tranquilo Natal em família....

4 comentários:

  1. Ufa.. Deixa eu respirar aqui. O amor tem dessas coisas, o arrebatamento completo nos rouba o fôlego. Mas diga, Edu, um conto baseado em fatos reais, não foi? Parabéns, querido! Que a leveza dessa escrita te acompanhe na defesa do dia 6/04. Abraço! IFarias.

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  2. Se é amor deveria ser mais forte que nós! Concorda? Vejamos Adriano, caso entre em campo pelo Timão contra o Flamengo....

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  3. Para refletir junto...

    Pelada na rua


    Eduardo Neves - Pelada na rua*
    14/6/2007 -

    *Adaptado da cultura popular que circula entre profissionais e estudantes de psicologia.

    O velho psicólogo finalmente cede as pressões da universidade e aceita se aposentar. Na primeira tarde que passa em casa percebe que um grupo de meninos do bairro costumava jogar bola todos os dias bem debaixo de sua janela. Um barulho infernal para quem desejava, agora, apenas curtir o merecido descanso. Na sua primeira tentativa de aproximação com os meninos, pede a eles que joguem em outro horário ou não façam muito barulho durante o jogo (coitado, passou tanto tempo sob as paredes do laboratório que não tinha idéia sobre a vida pratica...).


    Logicamente ouviu o que não queria dos garotos e voltou para casa preocupado. Tantos anos lidando com repertórios complexos e agora uma enorme dificuldade para resolver um problema da vida cotidiana. Pensou, pensou, pensou... queria muito saber sobre as variáveis que mantinham aqueles meninos jogando. Aproveitou a folga e pôs-se a assistir televisão. Quase por acaso, mudando os canais da televisão, parou em um programa esportivo que tivera poucas chances de assistir nos últimos anos. O repórter apresentava uma matéria sobre o número de jogadores que estavam sob os cuidados do departamento médico de um clube de futebol da cidade. Entre imagens de jovens treinando e outras com jogadores renomados estirados nas macas do D.M. chegou a ouvir um dirigente, em entrevista ao repórter, reclamando do quanto gastava com os salários dos tais jogadores que estavam em tratamento, do absurdo que era manter uma folha de pagamento tão exorbitante e ter tão pouco retorno...”Eureka!!!” – pensou bem alto o, agora aposentado, psicólogo. No outro dia sentou-se na calçada e ficou vendo os meninos jogarem. Quando estes, exaustos, iam indo embora os chamou para outra conversa. Alguns dos meninos desconfiados e já reticentes se aproximaram numa postura agressiva: " Nem vem que não tem vovô! Jogamos aqui ha muito tempo e não é agora que um gagá desocupado vai encher a gente!" O psicólogo, encarando sua nova realidade, com muita calma: "Calma garoto. Você tem razão. Mudei de idéia ao vê-los jogar. Vocês jogam bem demais, não devem parar mesmo! Fiquei tão satisfeito com a habilidade de vocês que agora estou do seu lado." Puxou algumas notas de 1 real do bolso e entregou uma a cada um dos meninos dizendo: "Tomem alguma coisa, devem estar com sede" e complementou: "Virei aqui todos os dias para ver vocês jogarem. Se gostar do jogo darei mais um real a cada um."


    Os dias foram passando, o velho gastou algumas dezenas de reais e os meninos já estavam se sentindo jogadores "profissionais", afinal estavam sendo pagos pelo jogo. Após alguns dias a pelada tinha ficado muito famosa entre os garotos da região e estes faziam filas nos times de fora. Muitos dos primeiros garotos já nem vinham mais pois estava difícil entrar com tantos garotos interessados. Um belo dia, acabada a pelada, os garotos correram ao velhinho que prontamente puxou as notas do bolso e anunciou: "a partir de amanhã continuarei a vir vê-los jogar mas não vou mais pagá-los." Os meninos, indignados, gritavam, xingavam e por fim um deles pos ordem a situação: "Não vai mais nos pagar?" O velho:"Não, agora só quero assistir." O Menino: " Então não vamos mais jogar! Amanhã, a pelada será na rua de baixo!" ...

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  4. Velhinho malandro.. rss. Histericizou os meninos e depois frustrou suas expectativas.

    Quanto ao Adriano ele marcará gols, será adorado e temido mas na 1a crise se refugiará na Vila Cruzeiro, no devir bandido a qual ele incorpora seja na alegria, seja na angústia.

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